14/07/2017

Minha vida sem Cecília


"Minha vida diária de mãe durou 1 ano e 13 dias. Do dia que me descobri grávida, 22 de novembro de 2015, até o dia que a Cecília morreu, 5 de dezembro de 2016. Os meses mais intensos e de maior emoção da minha vida.

Nenhuma palavra é possível para descrever a alegria e o amor que senti ao pegá-la no colo após 8h30 de trabalho de parto e 42 semanas e 1 dia de espera. Nenhuma palavra é capaz de descrever a emoção que senti, debulhada em lágrimas de alegria e alívio, quando finalmente chegamos em casa em 27 de agosto, depois de 17 dias de hospital e UTI. Nenhuma palavra é capaz de descrever o que senti ao vê-la desfalecida em meus braços ao chegarmos em casa de carro depois de mais um exame, até então eu achando que ela apenas havia dormido uns minutos no peito enquanto mamava, para em seguida ter a certeza de que a havia sufocado ou engasgado. Nenhuma palavra é capaz de descrever o que senti ao ver seus olhos pararem de brilhar na ambulância, e ter a certeza de que ela tinha morrido. Nenhuma palavra é capaz de descrever o que senti ao ver a expressão da médica vindo em minha direção no hospital depois de tentarem revivê-la por uns 40 minutos, enquanto eu aguardava no saguão de entrada sozinha, sem bateria no celular, meu marido e meus pais presos no trânsito das 18h30.

Cecília me trouxe as maiores emoções da vida. A maior alegria, a maior tristeza, a maior emoção, a maior saudade, o maior amor, a maior dor. Nunca aprendi tanto como desde 22 de novembro de 2015. Nunca me entendi e descobri tanto. Nunca entendi tão pouco do mundo, da vida, de nós. Nunca me cuidei tanto, nunca dei tão pouca atenção aos outros. Nunca as coisas tiveram um valor tão ínfimo. Nunca foi tão importante estar com as pessoas que mais amo, abraçar, conversar, amar. Tudo mudou de sentido. Tudo mudou de valor. Preocupações como se usaríamos talco ou pomada, se o berço ficaria na posição x ou y, se eu conseguiria um parto natural ou se teria uma cesárea, se o carro pequeno era suficiente pra nova vida com bebê. Nada disso mais importou a partir do momento que pisamos naquela UTI neonatal, Cecília com 1 dia de vida. E assim continuou depois que ela saiu de lá, enquanto investigávamos uma possível neutropenia grave, os exames, os médicos, a convivência com outras mães com filhos doentes, as histórias. Tudo passou a ter uma dimensão ainda menor depois de 5 de dezembro. Na mesma proporção, nunca o amor passou a ter significado tão grande. Dei a Cecília todo o amor, cuidado e carinho que eu podia nesse mundo. Nada do que eu fizesse de diferente teria mudado o destino da minha filha. Por isso, ao menos sigo com o coração tranquilo.

Desde 6 de dezembro, dia do velório da pequena, também me sinto envolta numa bolha de amor que não quero mais sair de dentro tão cedo. Quando Cecília ainda estava viva e passava na minha cabeça que isso um dia pudesse acontecer, eu achava que pegaria meu marido, duas mochilas e sairia sem destino pelo mundo, sem data pra voltar. Viajar é o que mais gostamos de fazer juntos, desde sempre. Só que, quando ela de fato morreu, tudo o que não tive vontade de fazer foi isso. Aquele velório com dezenas e dezenas de pessoas, um amor inexplicável em meio a tanta dor, as mensagens, os abraços, os carinhos. Tudo o que eu não queria mais era sair daqui. Queria era permanecer na minha bolha tanto quanto possível. No fim, tudo é sobre o amor. A dor que sinto é sobre o amor. A saudade é sobre o amor. O carinho que recebo de todos é sobre o amor. Na dor, sem o amor, seguir seria impossível.

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Quase 4 meses depois da morte da Cecília recebemos o resultado do exame genético, de material colhido dois dias antes de ela morrer. Sem esse exame, jamais saberíamos o que ela tinha. Duas mutações raríssimas, uma nunca antes relatada na medicina, outra pouco estudada, com mortes neonatal ou infantil em todos os indivíduos analisados. As mutações tornavam o sistema imunológico dela praticamente inexistente. A neutropenia era, no fim, apenas um dos vários problemas que ela viria a ter. Ao menos, esse problema tão grave que a levou tão cedo, também a impediu de sofrer. Faleceu como se dormisse, enquanto mamava em meu peito no carro, acalmando do trânsito e do calor. Seus órgãos super comprometidos, pulmão, baço, fígado, rim, mas sem que ela sentisse dor alguma. Saber disso foi um alívio e me trouxe certa tranquilidade. Minha maior ansiedade era imaginá-la sofrendo, ou mesmo voltando a uma UTI, intubada, furada, examinada, e tudo o mais pelo que passam os bebês naqueles dias de incubadoras.

Depois, conversando com uma especialista, descobri também que a Cecília só conseguiu viver até quase 4 meses porque eu a amamentei. Não tivesse eu amamentado, ela e suas defesas praticamente inexistentes não teriam resistido a alguns dias ou semanas de vida. Saber disso me fez chorar de emoção quase o tanto que chorei a perda dela. Amamentar foi uma batalha dificílima pra mim. Ela tinha sucção muito fraca, foram 4 meses de acompanhamento com fono, mamadeiras especiais para nenéns com problema, lutas com aquele translactador, horas e horas naquela bomba. Mas nada foi em vão. Eu sabia desde a UTI que ela tinha deficiência imunológica, pela neutropenia, e que meu leite era importante. Por isso, nunca desisti. Mas eu não tinha dimensão do quão importante era, de que foi aquela batalha que permitiu que ela ficasse o máximo de tempo possível comigo aqui. Saber disso me trouxe uma calma e um calor pro coração impossíveis de serem descritos.

O apoio que recebi da fono nesses meses também foi fundamental para que eu não desistisse. Uma anja em minha vida, como também têm sido as profissionais de saúde que têm me ajudado a seguir; fisio, terapeutas, nutri, todas um apoio fundamental para continuar adiante. Pensando nas mães que não têm essa rede de suporte que eu tenho, agradeço todos os dias por esses apoios, e por toda a bolha de amor em que fui envolvida – que inclui ainda, e especialmente, outras mães que já passaram ou estão passando pelo mesmo que eu.

Agora, sigo tentando descobrir quem sou essa nova eu que vai sair de tudo isso. Quem sou essa eu, mãe da Cecília, minha primeira filha, que não está mais aqui, mas permanece dentro de mim. Sem pressa. Com muitos medos e ansiedades. Tentando viver cada dia, sem pensar muito adiante. Um dia por vez. E focando em mim. Como nunca antes havia focado na vida. Eu, que sempre me doei tanto pelos outros. Aprendendo a olhar pra mim. Tem sido libertador, e ressignificador.

Sigo, procurando limpar o buraco da minha ferida doída bem devagarzinho, com calma. Choro quando dá vontade, falo quando dá vontade, me expresso quando sinto necessidade. E escrevo. Escrevo muito, sempre. “Vomito” tudo o que sinto em palavras, sem pensar, muitas vezes sem sequer reler, só colocando pra fora sentimentos e pensamentos confusos. Escrever é meu principal remédio. Me respeitar é outro. O que busco é limpar esse buraco ao máximo, para que nele não fiquem dores e sujeiras escondidas, que possam aparecer só lá na frente. E assim tenho seguido, procurando deixá-lo bem limpo, preparando-o para os próximos amores que um dia estarão por vir."

Clarice Chiquetto, jornalista, 38 anos, mãe da Cecília


Texto publicado originalmente na fanpage eu, mãe

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